domingo, 12 de dezembro de 2010

O Cientista e a eternidade


De olho no universo: O cientista e a eternidade
Carlos Romero Filho
do Portal Correio.


Entre as indagações mais profundas que o homem já se fez está a seguinte: o Universo sempre existiu? Em outras palavras, houve um começo de tudo? E ao refletir sobre o assunto é natural que sejamos levados a uma segunda questão: o Universo terá um fim?
Até o início do século XX, questões como essa eram discutidas exclusivamente no âmbito da Filosofia, ou da Religião. A Ciência parecia se mostrar completamente impotente para abordar tal tema. A teologia ocidental, por outro lado, oferecia uma resposta: o Universo teve, sim, um começo, quando foi criado por Deus. Todavia, ao defender a idéia de uma “criação” do Universo, os teólogos se deparavam com um sério problema. Porquanto, se o Universo, que compreende todas as coisas existentes, teve um início, com relação a que relógio se deu tal “início”? Não seria necessário admitir a preexistência de um “relógio cósmico”, anterior ao próprio Universo?... Para resolver contradições como essa, o arguto filósofo escolástico Santo Agostinho respondia com a afirmação de que Deus teria criado o tempo junto com o Universo, tornando desnecessária a existência prévia de um relógio.
Não era essa a visão de Newton, cientista inglês considerado o fundador da Física Clássica. Para Newton, o tempo tinha um carácter metafísico, absoluto, independente de qualquer observador, independente mesmo de toda realidade material, não podendo, portanto, ter sido criado juntamente com o Universo.
Por outro lado, para a filosofia, a solução teológica não parecia convincente. O problema do início do tempo, - ou do Universo, continuaria a ser intensamente debatido pelos filósofos, até o aparecimento de Immanuel Kant, cujas idéias causaram uma profunda mudança no pensamento filosófico moderno. Realmente, Kant, com sua “Crítica da Razão Pura”, pareceu encerrar de uma vez por todas a questão. Para o filósofo alemão, qualquer que seja nossa resposta à questão do início do Universo, seremos levados a uma contradição lógica, ou, uma “antinomia”, como se diz no jargão filosófico. Segundo Kant, também nunca poderemos saber se o Universo é espacialmente finito ou não. Não pretendo discutir aqui os argumentos de Kant, o que tomaria muito tempo, mas o fato é que, depois dele, ficou-se com a impressão de que, assim como a Ciência da época, a filosofia se revelaria definitivamente incapaz de abordar a mais fundamental das questões.
Acontece que esse cenário filosófico negativo não perduraria por muito tempo. Uma teoria científica revolucionária, nascida no início do século XX, parecia destinada a abrir novos horizontes em nossa concepção do mundo. Refiro-me à teoria da relatividade geral, formulada por Albert Einstein em 1915, que de uma maneira radical veio revolucionar completamente as noções de espaço e tempo concebidas pela Física clássica, desde sua criação por Newton. Mas, como é possível que uma teoria da Física tenha algo a dizer a respeito do início do mundo? Tal questão não parece transcender à Ciência?

A verdade é que Einstein, após ter conseguido inesperado êxito na explicação de vários fenômenos físicos ligados ao eletromagnetismo e à gravitação dos corpos, percebeu que sua nova teoria teria também muito a dizer sobre o nosso Universo considerado em sua totalidade. Isto era inteiramente novo, pois jamais uma teoria da Física tinha sido capaz de tratar o Cosmos como um sistema físico, possuindo uma dinâmica própria e sujeito a leis matemáticas, estas passíveis de serem descobertas pela observação e experimentação. Foi, então, a partir dessa constatação que o sábio alemão ousadamente construiu o primeiro modelo matemático do Cosmos. Nascia assim o chamado “Universo de Einstein”, que para perplexidade de muitos era finito, e não infinito, como se pensava antes.
Surge agora a indagação: com o modelo relativístico de Einstein, que se pode afirmar a respeito do início do Universo? A verdade é que, consistente com os dados observacionais e astronômicos disponíveis na época, o modelo de Einstein descrevia um universo eterno, sem começo e sem fim. Tratava-se de um universo estático, isto é, sem maiores mudanças, quando se considera uma escala cosmológica. Mas, tinha uma novidade, que era sua forma: finito e encurvado sobre si mesmo parecia uma gigantesca esfera tridimensional.
O Universo de Einstein teve vida curta. Uma descoberta surpreendente da Astronomia logo fez os cientistas abandonarem a concepção Einsteiniana. De fato, em 1929, o astrônomo americano Hubble descobriu que em cada ponto do Universo as galáxias se distanciavam umas das outras. O significado dessa observação era evidente: o Universo estaria em expansão. Ora, tal conclusão estava em flagrante contradição com o universo estático de Einstein. Era necessário, portanto, construir um novo modelo cosmológico, um modelo em que o Cosmos apresentasse uma natureza dinâmica, evolutiva, que desse conta desse movimento de expansão. Não demorou muito e tal modelo foi formulado. Seu autor: um desconhecido matemático e físico russo chamado Alexander Friedmann. O modelo de Friedmann, que também se utiliza da teoria da relatividade geral, levava a uma conclusão inesperada e estranha: o Universo teria tido um começo! Possivelmente, há cerca de 15 bilhões de anos.
A existência de um início do Universo, de acordo com a proposta de Friedmann, implicava que tanto o espaço como o tempo teriam tido também tido um começo. (Aliás, exatamente como queria Santo Agostinho). O instante zero da criação, quando toda matéria e energia teriam irrompido subitamente, vindo do nada, ficou sendo chamado a “grande explosão”, ou “big-bang”, para usar a expressão inglesa. Numa linguagem mais científica os cosmólogos se referem a este início explosivo como “uma singularidade cosmológica”. Nessa terminologia, podemos dizer que o modelo de Einstein, ao contrário da representação de Friedmann, predizia um universo “não-singular”.
Durante a década de sessenta do século passado, a idéia de que vivemos num Universo singular foi reforçada por argumentos extremamente convincentes apresentados por dois matemáticos ingleses: Stephen Hawking e Roger Penrose. A existência de uma tal singularidade cosmológica, parecia ser uma condição necessária e imperativa da própria teoria da relatividade geral. Não aceitar este fato implicaria rejeitar toda a teoria de Einstein e dados observacionais incontestáveis, algo que a comunidade dos físicos consideraria impensável.
Mas, a história da Ciência parece ilustrar magnificamente o funcionamento das leis da dialética, as quais, como bem percebeu o filósofo alemão Hegel, regem a evolução do nosso conhecimento. É sempre a partir das contradições e da superação destas que avança o conhecimento científico. Nada parece ser definitivo no conhecimento científico, não há verdades imutáveis e tudo tem um carácter provisório. Não poderia ser diferente com a teoria do “big bang”. A teoria do Universo que predizia sua criação súbita engendraria sua própria contradição. E foi assim que, no final da década de oitenta, começaram a aparecer novas alternativas para o paradigma do Universo Singular. E o mais importante: todas elas compatíveis com os dados observacionais mais recentes da Astronomia.
As novas teorias do Universo baseavam-se no argumento de que se a teoria original de Einstein sofresse pequenas modificações, as conseqüências inexoráveis dos teoremas de Hawking e Penrose seriam evitadas. A partir deste momento novos cenários do Cosmos começaram a aparecer, agora contando outras histórias... E entre essas, peço permissão ao leitor para contar uma delas, bem particular. Uma história que relata um fato científico, do qual tive a feliz oportunidade de tomar parte.
No final dos anos oitenta concluí meu doutorado em Cosmologia, disciplina que me fascinava pela magnitude e relevância das questões de que tratava. Particularmente atraído pelo mistério do Universo primordial, eu me sentia excitado com as propostas de novas teorias que defendiam a idéia de um universo não-singular. Nessa época, a teoria da gravitação de Einstein passava por uma espécie de revisão em vários sentidos. Era como se todas buscassem novas idéias para explicar o universo primordial, e oferecer uma resposta alternativa à questão da singularidade inicial. Uma delas me chamou a atenção pela sua elegância matemática: a chamada teoria de Einstein-Cartan, uma modificação da relatividade geral.
Foi nessa época que conheci Mário Assad, que, assim como eu, tinha acabado de defender sua tese de doutorado em Cosmologia. Duas circunstâncias, nessa ocasião, me pareceram muito favoráveis: Mário era um especialista da teoria de Einstein-Cartan e estava regressando à UFPb para lecionar e formar um grupo de pesquisas. Era portanto, quase inevitável, que começássemos uma colaboração científica. E para minha surpresa, partiu dele a iniciativa de investigar o que eu já tinha em mente: a dinâmica do Cosmos na teoria relativística de Einstein-Cartan. Detentor de uma sólida formação em Cosmologia, Mario me falou, de uma conjectura sua. O Universo seria eterno, como no velho modelo de Einstein, porém com uma diferença: não seria estático, mas oscilante, alternando fases de expansão e contração. Segundo o pensamento dele, estaríamos agora numa fase de plena expansão, num regime em que todas as galáxias se distanciam umas das outras. Continuando, seguir-se-á uma fase em que teremos o reverso desse movimento. Nessa fase posterior, o Universo começaria a se contrair, tornando-se cada vez mais denso. Aí a temperatura do Universo atingiria níveis altíssimos, fazendo com que a matéria na forma em que a conhecemos se desestruturasse completamente. Até que...
Não, leitor, nesta fase de contração o Universo não se tornaria singular, com tudo que existe se concentrando num único ponto. Não haveria o colapso total da matéria e nem do próprio espaço-tempo. No novo modelo cosmológico imaginado por Mário Assad, a singularidade cósmica seria evitada e o Universo voltaria a se expandir como antes, num eterno movimento de expansão e contração. Haveria naturalmente um mecanismo capaz de produzir uma força de repulsão que evitaria o colapso gravitacional. E de onde viria tal força? A resposta é que a repulsão viria de uma propriedade muito curiosa da matéria: o spin das partículas elementares. O spin, uma propriedade quântica da matéria, daria origem ao que os físicos teóricos chamam de torção do espaço-tempo. O spin: eis aí um dado que não havia sido levado em conta na teoria da relatividade geral. Confesso que experimentei grande prazer estético com tal conjectura e me lembrei de que a mesma idéia de um universo eterno e oscilante, sem início nem fim, já havia fascinado outros cosmólogos, entre eles John Archibald Wheeler, um dos mais criativos cientistas do século passado.
Concluímos nossas investigações sobre modelos cosmológicos na teoria de Einstein-Cartan em pouco mais de um mês. Não me esqueço da enorme satisfação que tive ao verificar que os cálculos confirmavam as idéias de Mário Assad. Estávamos, sem dúvida, diante de um novo cenário cosmológico. Não era o Universo de Newton, nem de Einstein, nem o de Friedmann, nem muito menos o de Santo Agostinho. Uma pequena modificação da genial teoria da relatividade, que simplesmente levava em conta a presença do spin da matéria, eis aí o ingrediente adicional que conduzia a um resultado bem diferente. O Universo era eterno, pulsava, “respirava”... Curiosamente, representações como essa já haviam aparecido na cosmologia hindu, assim como cosmologia chinesa: uma fase yin, seguida de uma fase yang, num eterno movimento de expansão e contração...
Apesar de termos ficado satisfeitos com o que havíamos feito, a verdade é que não tínhamos a pretensão de ter obtido nenhuma importante descoberta científica. Víamos nosso resultado com um mero modelo matemático um exercício teórico que explorava as conseqüências da teoria de Einstein-Cartan. Mesmo assim, apresentamos nossas conclusões numa conferência na Universidade do Colorado. E no ano seguinte, publicamos nosso trabalho na revista Astrophysics and Space Science, um modesto periódico europeu especializado em Astrofísica. Era o ano de 1990, e eu não sabia que essa seria minha única e última colaboração científica com Mário Assad.
Aparentemente o modelo do Universo eterno e oscilante não teve muita repercussão no meio científico. Até hoje nunca vi uma citação bibliográfica do nosso artigo. Na verdade, eu até já o havia esquecido. Mas, eis então que me deparo com uma curiosa reportagem publicada recentemente pela revista VEJA sobre uma nova teoria de buracos negros, proposta pelo cientista polonês Nokodem Poplawski. Buracos negros são, talvez, a previsão mais estranha da relatividade geral e hoje tornaram-se muito populares na ficção científica. Segundo a teoria padrão da gravitação, no interior de cada buraco negro existe uma singularidade, um ponto onde a matéria atinge uma densidade infinita devido a inexorável colapso gravitacional. Há um fortes evidências de que essas criaturas cósmicas existam mesmo. No entanto, lendo o artigo da VEJA, constato que para Poplawski a matéria no interior de um buraco negro não se tornaria singular. Segundo este cientista, tal singularidade prevista pela relatividade geral é fictícia: forças de repulsão causadas pela torção do espaço-tempo, isto é pelo spin da matéria, superariam a força da gravidade, evitando o colapso. E mais, ainda segundo Poplawski, a teoria da gravitação de Einstein deveria ser substituída pela teoria de Einstein-Cartan! Fiquei perplexo. O mecanismo invocado por Poplawski era exatamente o mesmo do modelo do Universo eterno e oscilante, que Mário Assad tinha concebido vinte anos atrás... Fiquei pensando como é interessante o aparecimento e reaparecimento de idéias idênticas na história da Ciência...
O fato é que se a teoria de Poplawski estiver correta, é possível que possamos encontrar uma resposta à questão do início do Universo. Mas, como ainda é cedo para saber, por enquanto o mistério persiste. Como tantos outros mistérios, que nossa “vã” Ciência ainda não consegue explicar.
Mas, terminemos por aqui, esta conversa que não quer acabar, como se quisesse ser eterna. A verdade, leitor, é que, mudando um pouco de assunto, recontar essa história me deu uma grande saudade dele...Dele, o cientista, o professor, o colega e amigo. O eterno Mário Assad.

Um comentário:

fiumedellavita disse...

Eu amo a sabedoria porque ela estava nas origens de tudo aprendendo com Deus.